No mundo dos esportes de alto rendimento e atletismo de força, o painel de sangue médico padrão frequentemente apresenta um quadro confuso — e às vezes alarmante. Para muitos fisiculturistas e levantadores de peso, um check-up de rotina produz um resultado "sinalizado" para creatinina, um marcador primário usado para avaliar a saúde dos rins. Embora um indivíduo sedentário com esses números possa ser diagnosticado com doença renal crônica (DRC) em estágio 2 ou 3, para o atleta de elite, a realidade é frequentemente muito mais complexa.
Essa lacuna diagnóstica é conhecida como o "Paradoxo da Creatinina". Ele destaca uma limitação significativa na medicina esportiva moderna: a dependência de faixas de referência derivadas de populações gerais, muitas vezes sedentárias, para avaliar indivíduos com perfis fisiológicos extremos.
A Bioquímica do Marcador
Para entender por que os atletas frequentemente desencadeiam falsos positivos para disfunção renal, deve-se observar a fonte do próprio marcador. A creatinina é um subproduto metabólico da creatina fosfato, um composto crítico para a produção rápida de energia no músculo esquelético.
A cada dia, aproximadamente 1% a 2% do estoque total de creatina do corpo é convertido não enzimaticamente em creatinina e liberado na corrente sanguínea. Como essa conversão acontece a uma taxa relativamente constante, ela serve como um proxy confiável para a Taxa de Filtração Glomerular (TFG) — a velocidade com que os rins filtram os resíduos.
No entanto, o volume de creatinina produzido é diretamente proporcional à massa muscular esquelética total. Um atleta de força de 110 kg possui uma "fábrica metabólica" significativamente maior do que um funcionário de escritório sedentário de 70 kg. Consequentemente, a creatinina sanguínea basal do atleta residirá naturalmente no limite superior da faixa "normal" (tipicamente 0,7 a 1,3 mg/dL) ou mesmo excedê-la (atingindo 1,5 a 1,8 mg/dL) sem qualquer diminuição real na função renal.
O Impacto dos Aprimoramentos de Desempenho
Quando drogas para melhorar o desempenho (PEDs), especificamente esteroides anabolizantes androgênicos (EAA), são introduzidas, o quadro diagnóstico torna-se ainda mais distorcido. Os esteroides impulsionam a hipertrofia muscular rápida, o que aumenta ainda mais os níveis de creatinina basal.
Além disso, muitos atletas que utilizam essas substâncias seguem dietas ricas em proteínas e usam suplementos de creatina monohidratada.
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Ingestão Elevada de Proteína: Aumenta a "Reserva Funcional Renal" e pode causar hiperfiltração temporária.
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Suplementação de Creatina: Aumenta diretamente o pool de substrato, levando a um pico de creatinina que não tem correlação com danos aos órgãos.
A preocupação "profunda" para os clínicos, no entanto, é que os esteroides podem ser legitimamente nefrotóxicos. O uso crônico tem sido associado à glomerulosclerose segmentar focal (GESF) — uma condição em que as unidades de filtragem do rim ficam cicatrizadas — e hipertensão maligna. O desafio para os médicos esportivos é distinguir entre "Creatinina Alta do Músculo" e "Creatinina Alta de Danos".
A Falha das Equações Padrão de TFG Estimada
A maioria dos laboratórios não mede a TFG diretamente; eles a estimam (eTFG) usando fórmulas como CKD-EPI ou MDRD. Essas equações incluem variáveis para idade e sexo, mas raramente levam em conta a composição corporal. Em um indivíduo fortemente musculoso, essas fórmulas quase universalmente subestimam a função renal, potencialmente levando a intervenções médicas desnecessárias ou estresse psicológico para o atleta.
Avançando em Direção ao Padrão Ouro: Cistatina C
Para contornar o "Viés da Massa Muscular", a medicina esportiva moderna está mudando para o uso de Cistatina C. Ao contrário da creatinina, a Cistatina C é uma proteína produzida por todas as células nucleadas do corpo a uma taxa constante.
| Característica | Creatinina | Cistatina C |
| Fonte | Catabolismo muscular | Todas as células nucleadas |
| Afetado pela Dieta? | Sim (Alta proteína/Creatina) | Não |
| Afetado pelo Músculo? | Sim (Diretamente proporcional) | Mínimo a nenhum |
| Sensibilidade | Baixa nos estágios iniciais de dano | Alta; detecta declínio precoce da TFG |
Para qualquer atleta com massa muscular significativa, uma eTFG baseada em Cistatina C fornece uma visão "limpa" da saúde renal, livre do ruído de seu treinamento e físico. Se a creatinina estiver alta, mas a Cistatina C estiver dentro da faixa, o atleta pode ter certeza razoável de que seus rins estão lidando com a carga metabólica de forma eficaz.
Conclusão e Recomendações
O teste padrão de creatinina é um instrumento grosseiro em um mundo de atletismo de precisão. Para aqueles que estão ultrapassando os limites da fisiologia humana, o monitoramento da saúde deve ser igualmente sofisticado.
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Estabeleça uma Linha de Base: Os atletas devem fazer exames de sangue durante uma fase de "cruise" ou deload para ver seus níveis de repouso.
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Solicite Cistatina C: Se uma leitura de creatinina for persistentemente alta, use Cistatina C para confirmar se é um produto do volume muscular ou um sinal de estresse genuíno.
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Monitore a Pressão Arterial: Danos nos rins em atletas são frequentemente um resultado secundário da pressão alta. Manter uma leitura próxima a 120/80 mmHg é indiscutivelmente mais importante para a saúde renal a longo prazo do que qualquer marcador sanguíneo isolado.

